Castiel Vitorino Brasileiro sobre o filme “O Túmulo da Terra” para a 1ª edição da LÂMINA – Mostra Audiovisual Preta (ES)

Em O Túmulo da Terra (2021), de Yhuri Cruz (RJ) encontramos uma jornada heróica, paranoica, talvez comum à questão tornar-se negro, e de certo, incomum, ao contexto imagético que se insere. Sua sonoridade é marcada pela presença de pianos, sinos e outras vibrações habituais em óperas e em filmes de suspense. E suas imagens, completam a experiência sonora na medida em que nos convidam ao inevitável exercício de imaginar os tons dos gritos de espanto e de raiva e as gargalhadas de medo e gozo, sendo que todos esses sons estão mutados no filme. Logo, a comunicação gestual comparece com o cuidado exigido para a consolidação de uma comunicação, ou seja, a elaboração de uma linguagem; neste caso, Pretofágica. Importante dizer sobre a pesquisa escultórica do diretor, com peças feitas em pedra de mármore – as quais pude sentir o peso em uma visita ao seu ateliê – pois esse filme também nos diz sobre presença, permanência, desaparecimento, invocação e ausência: componentes da Subjetividade como categoria violenta, nunca alcançada ainda que desejada, a Subjetividade é um exercício de domínio em pessoas escuras. Subjetividade e Humanidade, dois destinos mentirosos, pelos quais tentamos construir uma vida. Mas nossa vida escura também não cansa de nos avisar que a racialização é apenas uma distração. Em poucas palavras, precisamos decidir pelo que enterrar e desenterrar.

(Castiel Vitorino Brasileiro, 2021)

Yhuri Cruz por Clarissa Diniz para Pivô-Pesquisa (2020)

Nascido como um ensaio e performado como uma cena, além de ser um marco na trajetória de Yhuri Cruz, Pretofagia (2019) tem se tornado uma espécie de método de sua obra. Não um modo específico de escrita ou de dramaturgia, mas uma cosmopolítica que habita e fabula histórias, ancestralidades e tempos através de corpos, textos, imagens, gestos, objetos, espaços. Um processo de criação que encontra na devoração uma forma de se mover e de produzir movimento. Tornados cúmplices dessa cosmopolítica, somos afetados por suas entidades: fantasmas, orixás, paisagens, cantos, nomes, máscaras, pessoas, monumentos, pedras. Presenças que, convivendo na obra do artista, refundam coletividades, memórias e futuros ao fagocitar estigmas, traumas e violências. Pretofágico, o trabalho de Yhuri Cruz assim espirala a flecha do tempo e aterroriza política e poeticamente as persistentes assombrações coloniais com a espantosa força daquilo e daqueles que delas seguem escapando.

(Clarissa Diniz, 2020)

Pretofagia: Uma exposição-cena | Texto curatorial de Marcelo Campos (2019)

Uma reflexão em diálogo é o que percebemos em Pretofagia, individual de Yhuri Cruz, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Diálogos, binarismos, dualidades marcam, assim, lugares a serem horizontalizados. “Nenhuma direção a não ser ao centro”, nos interpela o artista que se interessa por algo historicamente negado ao negro na sociedade brasileira: o protagonismo.

Partindo de um texto escrito em forma de manifesto no ano de 2018, Yhuri Cruz vem tensionando as relações institucionais ao questionar a ausência de negras, negros, negres nos contingentes de espaços de cultura no Rio de Janeiro. “Onde estão os negros?”. A pergunta do coletivo paulistano Frente 3 de Fevereiro continua ecoando e fazendo sentido cada vez que olhamos ao redor.

Em Pretofagia Yhuri ambiciona o mergulho, em si, nas outridades, num devir coletivizado. No texto que será encenado na exposição, o artista reflete que o “corpo subjetivo preto” se faz como “um corpo dentro do corpo”. Resultado de uma residência do artista no CMAHO, durante o processo de trabalho foram convidadxs artistas, performers, psicanalistas negrxs que trouxeram para o debate a racialização em âmbitos mais ampliados, da arte à psicanálise, do teatro ao cotidiano. Branco e preto são as cores predominantes nos trabalhos apresentados. Palco e plateia, corpo e voz, eu e outrx. Ocupamos, hoje, uma posição que nos faz exigir, em visões eurocêntricas, heteronormativas e brancas a racialidade e a dissidência de gêneros como lugares a serem discutidos, problematizados. Achille Mbembe, Djamila Ribeiro, Grada Kilomba e tantas e tantos outrxs já se empenharam em declarar que não podemos mais usar ícones e signos de uma suposta universalidade, pois as bases do pensamento normatizado e iluminista sempre tiveram cor. Precisamos, com isso, “empretecer”, como dirá Jota Mombaça. Justamente, a procura da luz fez com que uma classe específica da Europa, a burguesia, sistematizasse sentidos socioculturais e econômicos em nome de uma suposta “liberdade”. Mas, a “liberdade” de pensamento nos séculos XVII e XVIII desprezava a realidade que estava em franca expansão no mesmo momento, a escravização. A luz que ilumina o corpo e as ideias eurocêntricas, com isso, manteve bases greco-romanas, com seus vestígios em mármores brancos, seus ideais de corpo e gênero, o que acabou por fomentar a desigualdade frente aos porões que concentravam almas de pretas e pretos velhos que adubavam terras longínquas, sequestrados, deslocados por diásporas.

Yhuri Cruz, de modo enviesado, atravessa essas relações. Faz do colorismo da argila e do mármore característica reflexiva entre corpos em pedaços, como são construídos os estigmas (cabelos, bocas, narizes). Louva as almas, em interpretações que partem de experiências em ambientes familiares. Faz do rosto, máscara. Da máscara, escultura. E, assim, dialoga criticamente com a tradição brancusiana. A representação tanto das cabeças de Brancusi, apropriadas de máscaras africanas, quanto da coluna infinita retornam racializadas. Pensemos no jogo de palavras entre Brancusi, escultor modernista, e a máscara Pretusi, proposta por Yhuri e teatralizada pela performance em atos, um dos momentos de Pretofagia. Pensemos, em outro caminho, nas colunas, agora, feitas de latas de 20 litros, amassadas pelo labor, componentes vestigiais das obras com marcas de mãos subalternizadas.

O teatro proposto em atos por Yhuri, discutidos durante a residência no espaço expositivo, pensa o corpo negro inventado “como uma cena”, o que se caracteriza por atravessamentos entre dualidades e coletivizações. As personagens se tornam, se transformam, se recusam, se permitem. Andam em procissão, lutam em cabo de guerra, se exibem. As palavras proferidas em atos retornam, todas, ao corpo, reelaborando as recusas e performando o posicionamento frente ao precipício. A dualidade, nas cenas, ganha certo acento grave. E a singularidade dos gestos tanto se aproxima da catarse, quanto se hibridiza ao transe e à meditação.

Numa rua do bairro de Realengo, a casa é construída em torno de uma pedra. Nela, os ambientes tornam-se imantados pela natureza e por espíritos, orixás, seres de luz, crianças que convivem em plano terreno sem distinguirem seus iguais, seus e suas irmãos e irmãs. Pelos ambientes da casa, chegam conhecidxs e desconhecidxs, expõem suas aflições, oram, se concentram, meditam e se conectam com o espiritual. Ali, o adulto abre e fecha as portas, tateia as areias, e se acostuma a respeitar correntes plurivocais, vindas de um além multicultural, que desde a infância fazem parte do seu cotidiano. Atravessando a cidade, o menino busca seus iguais, seus irmãos e suas irmãs, estranha as ausências, e resolve, assim, questionar o centro, não para criar fronteiras, viver nas margens, mas, ao contrário, para querer ver na escuridão, lançar luz em outros meios de existir. Existir no centro. “Após a diáspora, nenhuma direção a não ser aos centros de si”.

(Marcelo Campos, 2019)

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