Artigo “Contemplação, totalidade, vingança: Revenguê de Yhuri Cruz (Museu de Arte do Rio)”, por Viníciux da Silva para TERREMOTO.MX

Três bocas abertas recepcionam a nossa primeira chegada à Revenguê; são obras que fazem parte da série Arcadas, alguns dos mais de sessenta trabalhos inéditos apresentados por Yhuri Cruz em Revenguê, segunda exposição-cena do artista. Caminhando no espaço expositivo, novas dimensões de Revenguê se revelam: são vozes, sensações e imagens que nos possibilitam compreender outras dimensões e se relacionar com a obra, na totalidade, de outro(s) modo(s).

Contemplação. Totalidade. Vingança. Como chegar à Revenguê? Para além da fisicalidade dos objetos, como se aproximar do projeto estético que torna essa vingança possível? Entre profundos vermelhos, Revenguê existe no mistério, na opacidade e na lentidão da vida plena. Aqui, é Pã Musa Vassauli, habitante do planeta rochoso de Plenér, que nos conduz a Revenguê.

Eis aqui algo para pensar. Revenguê nos oferece algo para pensar. Primeiramente, porque, em sua forma, Cruz opera nos limites entre a cena e a performance ao se afirmar para além desta classificação; incluindo, também, no espaço expográfico obras que conferem camadas de significação ao universo simbólico da dramaturgia. Assim, não se trata de compreender uma “forma ideal” para Revenguê, mas sim permitir-se habitá-lo enquanto projeto de vida — de uma vida que existe e se vinga para além das determinações do mundo que habitamos.

Em termos de estrutura, Revenguê não compreende somente uma cena, mas também o conjunto de trabalhos, vozes e corpos que passam por sua estadia temporária em nosso planeta. Nesse sentido, a composição objetual se relaciona com a ativação cênica desses objetos, por meio do que arrisco chamar de rito: uma inscrição, um movimento, uma “projeção do espaço em uma temporalidade que o espelha” — constituindo um dos pilares de Pretofagia, a recusa do personagem —, construindo uma forma de trabalho que só se torna possível na méthexis

As obras que constituem Revenguê são trabalhos inéditos produzidos pelo artista para a exposição. Divididos em séries, eles permitem o nosso contato visual com a passagem de Pã para/no planeta Revenguê. Esses trabalhos são registros da boa morte (série Altos Túmulos), são espíritos (série Efeitos da Maré), é a grande boca de Pã (série Arcadas) nos devorando. Levando-nos a uma viagem no tempo, a série Cartazes para Revenguê e as séries de Pã e Pés de Pã nos apresentam as diferentes formas dos planetas Plenér e Revenguê e da viajante, que está em uma ópera intergalática em busca da vida plena. 

Enquanto projeto de cena, Revenguê é a sétima cena de Pretofagia. Podemos compreender Pretofagia, projeto de Cruz, de três formas: enquanto projeto de cena, projeto estético e método criativo. Como um ataque ao centro, Pretofagia opera um trabalho coletivo que, nas palavras do artista, trai a linguagem e emancipa movimentos, produzindo um modo de relação com o trabalho que não se limita e reduz às ferramentas coloniais da arte. Pretofagia é, também, uma viagem no tempo; Pretofagia desloca o tempo linear e a nossa própria percepção do (espaço-)tempo.

Com uma duração variável entre 1h e 1h30, as cenas de Revenguê acontecem em quase completo silêncio, com um único momento de fala — onde Pã diz, enfim, seu nome —, são cenas lentas, sem clímax, que ativam muitos sentidos. A presença de um piano em cena, no entanto, produz uma atmosfera de ruptura, um lirismo quase excedente, nas palavras de Fred Moten, pois aqui está Pã: “nessa quebra, nesse corte, nessa ruptura” constitutiva onde reside o espetáculo da “magia preta”. Eis a dádiva de Revenguê.Revenguê opera um movimento de lentidão que, conforme Tina M. Campt, “é mais que um movimento; é um modo de amplificação. Ela amplifica a sensação e nos sintoniza com as intensidades da micropercepção” (p. 110). Trata-se do silêncio — que não implica na ausência de som — e da lentidão como lugares estéticos, como uma ética do cuidado, construindo assim um planeta onde sentir é ouvir e escolher vingar a vida é motivo de alegria profunda.

(vinicius da silva, 2023)

Link para leitura: https://terremoto.mx/online/contemplacion-totalidad-venganza-revengue-uma-exposicao-cena-de-yhuri-cruz-en-el-museo-de-arte-de-rio/

Castiel Vitorino Brasileiro sobre o filme “O Túmulo da Terra” para a 1ª edição da LÂMINA – Mostra Audiovisual Preta (ES)

Em O Túmulo da Terra (2021), de Yhuri Cruz (RJ) encontramos uma jornada heróica, paranoica, talvez comum à questão tornar-se negro, e de certo, incomum, ao contexto imagético que se insere. Sua sonoridade é marcada pela presença de pianos, sinos e outras vibrações habituais em óperas e em filmes de suspense. E suas imagens, completam a experiência sonora na medida em que nos convidam ao inevitável exercício de imaginar os tons dos gritos de espanto e de raiva e as gargalhadas de medo e gozo, sendo que todos esses sons estão mutados no filme. Logo, a comunicação gestual comparece com o cuidado exigido para a consolidação de uma comunicação, ou seja, a elaboração de uma linguagem; neste caso, Pretofágica. Importante dizer sobre a pesquisa escultórica do diretor, com peças feitas em pedra de mármore – as quais pude sentir o peso em uma visita ao seu ateliê – pois esse filme também nos diz sobre presença, permanência, desaparecimento, invocação e ausência: componentes da Subjetividade como categoria violenta, nunca alcançada ainda que desejada, a Subjetividade é um exercício de domínio em pessoas escuras. Subjetividade e Humanidade, dois destinos mentirosos, pelos quais tentamos construir uma vida. Mas nossa vida escura também não cansa de nos avisar que a racialização é apenas uma distração. Em poucas palavras, precisamos decidir pelo que enterrar e desenterrar.

(Castiel Vitorino Brasileiro, 2021)

Yhuri Cruz por Clarissa Diniz para Pivô-Pesquisa (2020)

Nascido como um ensaio e performado como uma cena, além de ser um marco na trajetória de Yhuri Cruz, Pretofagia (2019) tem se tornado uma espécie de método de sua obra. Não um modo específico de escrita ou de dramaturgia, mas uma cosmopolítica que habita e fabula histórias, ancestralidades e tempos através de corpos, textos, imagens, gestos, objetos, espaços. Um processo de criação que encontra na devoração uma forma de se mover e de produzir movimento. Tornados cúmplices dessa cosmopolítica, somos afetados por suas entidades: fantasmas, orixás, paisagens, cantos, nomes, máscaras, pessoas, monumentos, pedras. Presenças que, convivendo na obra do artista, refundam coletividades, memórias e futuros ao fagocitar estigmas, traumas e violências. Pretofágico, o trabalho de Yhuri Cruz assim espirala a flecha do tempo e aterroriza política e poeticamente as persistentes assombrações coloniais com a espantosa força daquilo e daqueles que delas seguem escapando.

(Clarissa Diniz, 2020)

Pretofagia: Uma exposição-cena | Texto curatorial de Marcelo Campos (2019)

Uma reflexão em diálogo é o que percebemos em Pretofagia, individual de Yhuri Cruz, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Diálogos, binarismos, dualidades marcam, assim, lugares a serem horizontalizados. “Nenhuma direção a não ser ao centro”, nos interpela o artista que se interessa por algo historicamente negado ao negro na sociedade brasileira: o protagonismo.

Partindo de um texto escrito em forma de manifesto no ano de 2018, Yhuri Cruz vem tensionando as relações institucionais ao questionar a ausência de negras, negros, negres nos contingentes de espaços de cultura no Rio de Janeiro. “Onde estão os negros?”. A pergunta do coletivo paulistano Frente 3 de Fevereiro continua ecoando e fazendo sentido cada vez que olhamos ao redor.

Em Pretofagia Yhuri ambiciona o mergulho, em si, nas outridades, num devir coletivizado. No texto que será encenado na exposição, o artista reflete que o “corpo subjetivo preto” se faz como “um corpo dentro do corpo”. Resultado de uma residência do artista no CMAHO, durante o processo de trabalho foram convidadxs artistas, performers, psicanalistas negrxs que trouxeram para o debate a racialização em âmbitos mais ampliados, da arte à psicanálise, do teatro ao cotidiano. Branco e preto são as cores predominantes nos trabalhos apresentados. Palco e plateia, corpo e voz, eu e outrx. Ocupamos, hoje, uma posição que nos faz exigir, em visões eurocêntricas, heteronormativas e brancas a racialidade e a dissidência de gêneros como lugares a serem discutidos, problematizados. Achille Mbembe, Djamila Ribeiro, Grada Kilomba e tantas e tantos outrxs já se empenharam em declarar que não podemos mais usar ícones e signos de uma suposta universalidade, pois as bases do pensamento normatizado e iluminista sempre tiveram cor. Precisamos, com isso, “empretecer”, como dirá Jota Mombaça. Justamente, a procura da luz fez com que uma classe específica da Europa, a burguesia, sistematizasse sentidos socioculturais e econômicos em nome de uma suposta “liberdade”. Mas, a “liberdade” de pensamento nos séculos XVII e XVIII desprezava a realidade que estava em franca expansão no mesmo momento, a escravização. A luz que ilumina o corpo e as ideias eurocêntricas, com isso, manteve bases greco-romanas, com seus vestígios em mármores brancos, seus ideais de corpo e gênero, o que acabou por fomentar a desigualdade frente aos porões que concentravam almas de pretas e pretos velhos que adubavam terras longínquas, sequestrados, deslocados por diásporas.

Yhuri Cruz, de modo enviesado, atravessa essas relações. Faz do colorismo da argila e do mármore característica reflexiva entre corpos em pedaços, como são construídos os estigmas (cabelos, bocas, narizes). Louva as almas, em interpretações que partem de experiências em ambientes familiares. Faz do rosto, máscara. Da máscara, escultura. E, assim, dialoga criticamente com a tradição brancusiana. A representação tanto das cabeças de Brancusi, apropriadas de máscaras africanas, quanto da coluna infinita retornam racializadas. Pensemos no jogo de palavras entre Brancusi, escultor modernista, e a máscara Pretusi, proposta por Yhuri e teatralizada pela performance em atos, um dos momentos de Pretofagia. Pensemos, em outro caminho, nas colunas, agora, feitas de latas de 20 litros, amassadas pelo labor, componentes vestigiais das obras com marcas de mãos subalternizadas.

O teatro proposto em atos por Yhuri, discutidos durante a residência no espaço expositivo, pensa o corpo negro inventado “como uma cena”, o que se caracteriza por atravessamentos entre dualidades e coletivizações. As personagens se tornam, se transformam, se recusam, se permitem. Andam em procissão, lutam em cabo de guerra, se exibem. As palavras proferidas em atos retornam, todas, ao corpo, reelaborando as recusas e performando o posicionamento frente ao precipício. A dualidade, nas cenas, ganha certo acento grave. E a singularidade dos gestos tanto se aproxima da catarse, quanto se hibridiza ao transe e à meditação.

Numa rua do bairro de Realengo, a casa é construída em torno de uma pedra. Nela, os ambientes tornam-se imantados pela natureza e por espíritos, orixás, seres de luz, crianças que convivem em plano terreno sem distinguirem seus iguais, seus e suas irmãos e irmãs. Pelos ambientes da casa, chegam conhecidxs e desconhecidxs, expõem suas aflições, oram, se concentram, meditam e se conectam com o espiritual. Ali, o adulto abre e fecha as portas, tateia as areias, e se acostuma a respeitar correntes plurivocais, vindas de um além multicultural, que desde a infância fazem parte do seu cotidiano. Atravessando a cidade, o menino busca seus iguais, seus irmãos e suas irmãs, estranha as ausências, e resolve, assim, questionar o centro, não para criar fronteiras, viver nas margens, mas, ao contrário, para querer ver na escuridão, lançar luz em outros meios de existir. Existir no centro. “Após a diáspora, nenhuma direção a não ser aos centros de si”.

(Marcelo Campos, 2019)

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